terça-feira, 19 de abril de 2011

Tratado Sobre o Fim - Parte II

Entro e chego à recepção. Todos me conhecem, todos me viram crescer, portanto não me perguntam nada. Não me pedem identificação. Deve ser usual, tendo alguém falecido, que os familiares se venham despedir do sítio que marcou as suas vidas. Eu não era a excepção.

Reconhecia cada cara. Mas algo estava diferente. As enfermeiras e ajudantes que tomavam conta dos doentes não vinham falar comigo. Os sorrisos e as palavras são normais aqui. Conhece-se gente fora de série nestes ambientes, gente que está disponível para ajudar para lá daquilo que lhes é exigível. Gente que respeita o sofrimento alheio. Mas também se conhece gente asquerosa, desprezível, gente que mercantiliza o sofrimento. Os sorrisos são normais aqui, mas demora algum tempo a perceber quais os sorrisos que são realmente valiosos.

Enquanto minha mãe foi viva vi muitas destas cenas: pessoas que julgávamos amigas apenas elogiavam o seu cachecol, repetidamente, simplesmente porque o queriam. E depois o relógio. E depois os sapatos.

Minha mãe oferecia todas estas coisas às pessoas que tratavam do meu avô, pensando que, com este tipo de agrados, de prendinhas, ele seria mais bem tratado. Faz-se de tudo e nem se pensa duas vezes.

Uma vez dêmos com uma destas pessoas a insultar um pobre homem que não falava, mal se mexia, condenado a viver de olhos abertos, aprisionado no seu corpo: “Estás a fazer-te pesado só para me chatear, não é?! Tu é que perdes! Hoje não te troco os pensos, nem te lavo, nem nada! Tu sempre foste um porcalhão, não é?”.

Trocar os pensos significa limpar e desinfectar as chagas que os acamados ganham nas costas por força de se encontrarem sempre na mesma posição: acamados. Corremos para o quarto porque os gritos se ouviam nos corredores. O meu avô estava a chorar sem som. Sem se mexer ou esboçar um movimento, as lágrimas escorriam pela sua cara. Ficámos tão transtornados que nem reparámos na fuga da senhora da nossa confiança, vestida dos pés à cabeça com roupas de minha mãe.

Entrei um pouco nos corredores labirínticos do edifício. Não havia problema, não me iria perder. Bastava orientar-me pelos gritos característicos dos doentes de sempre.

Havia um senhor, dois corredores abaixo do quarto do meu avô, que sempre que tinha fome dava um grito tão estridente que fazia ressoar as vidraças. Outro que quando queria chamar a empregada para o levar a casa de banho dava socos nas grades de ferro da sua cama, as quais, por sua vez, batiam na estrutura da cama, também de ferro, causando um barulho tremendo - tudo isto apesar de, a seu lado, na mesa-de-cabeceira, se encontrar um comando com um botão exactamente para esta finalidade.

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