sábado, 30 de abril de 2011

Falcão

Há muito tempo não sentia ele aquele medo de errar na pronúncia das palavras, como que a sua boca fosse um corpo autónomo que responde por si e sobre o qual não há possibilidade de controlo.

Conhecemos bem aquele medo, aquela ânsia de agradar ou - melhor - de não sermos desagradáveis aos olhos dos outros - especialmente daqueles a quem queremos impressionar.

Ele estava assim - com os olhos brilhantes e vivos de quem muito queria e pouco podia fazer.

Olhava-o a medo, temendo que a sua presença fosse - de certa forma - inconveniente.

Hoje, em sonhos, pediu um autógrafo a Radamel.

Obrigado pelos sonhos, meu querido.

sábado, 23 de abril de 2011

Tratado Sobre o Fim - Parte VI

Decidi procurar outro emprego. Sempre cozinhei para mim, talvez fosse mais fácil arranjar um emprego de cozinheiro. Não consegui. Não tinha experiência. A pouco e pouco percebi que não iria conseguir encontrar um emprego do qual gostasse. 

Mas afinal do que é que eu gosto? 

Eu não tenho hobbies, não tenho interesses em especial. Tudo o que fiz até hoje foi por necessidade ou por condicionalismo ligados ao meu avô. Gosto de cozinhar porque tive de cozinhar para mim. Gosto de ler porque precisava de passar o tempo até poder entrar na visita. Não sei fazer mais nada. E se fosse continuar os estudos? Mas eu não tenho dinheiro para isso. Posso sempre pedir emprestado… A quem? À mãe? À avó? 

As únicas pessoas que entraram na minha vida já dela saíram.
           
Passaram anos desde que o meu avô morreu. Continuo na velha casa fabril. Continuo à procura de emprego. Continuo a não ter ninguém na minha vida, a não ser a minha avó, mãe e avô.

Tenho saudades deles. 

Ultimamente tenho ido ler para o banco do jardim. Ontem peguei num pau velho e misturei umas pétalas de cores diferentes, espetei outro pau mais pequeno e soprei a vela do meu bolo de aniversário. Depois fechei os olhos e cerrei os dentes. Deitei-me na cama. 

Acabou. Tudo tem um fim.
           

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Tratado Sobre o Fim - Parte V

Foi assim com a livraria, com a biblioteca municipal e escolar, com a editora, com o jornal. Acho que vou ter de mudar de ramo.

Já passaram uns meses desde que o meu avô morreu e ainda acordo de noite a pensar que tenho de me despachar para não chegar tarde à visita, para ele não estar tanto tempo sozinho. Já estou a lavar os dentes e só quando olho bem no espelho é que reparo que já passaram alguns meses e que, por isso, não tenho de me despachar. Às vezes, quando saio de casa para ir comprar qualquer coisa, se me meter no carro, dou por mim a seguir o mesmo caminho que seguia para o lar. Já lá fui dar três vezes sem saber como.

Ontem encontrei um conhecido do liceu, nunca foi muito meu amigo, no sentido de nunca nos termos dado de uma forma muito próxima, mas tínhamos amigos em comum. Falou-me do meu colega de carteira e de como as coisas corriam bem no seu emprego de arquitecto. 

Fiquei cheio de vontade de lhe falar, reviver aquelas histórias de miúdos, de como costumávamos apalpar as meninas ou de como atirávamos pastilhas elásticas aos carros dos professores. O conhecido deu-me o número do meu companheiro de carteira. Fiquei feliz por saber que ele se dava bem no emprego. Casou e teve filhos. 

Liguei-lhe. Atendeu-me o que me pareceu ser uma empregada, dizendo-me que o casal não estava, estavam a gozar as primeiras férias com as meninas. Que bom, meninas. O meu companheiro de carteira tem duas meninas. Se tiverem os olhos do pai, são duas meninas de olhos azuis, que bom.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Tratado Sobre o Fim - Parte IV

A certa altura, vivia do seguro de vida de minha mãe e de parte da reforma do meu avô, já que a restante – e maior – parte se destinava ao pagamento do lar. Deixei a casa onde vivi com minha mãe, não tinha como pagar o empréstimo ao banco, e fui viver para casa dos meus avós, onde passei parte da infância. Uma casa antiga, num bairro fabril, na qual o quarto onde dormia era sempre alagado pela chuvas.

Fui coleccionando quase-amigos nos locais onde estudei, depois onde trabalhei, no próprio lar. Mas a verdade é que as pessoas evoluem na vida: ou porque se casam e vão viver para o outro lado da cidade; ou porque vão trabalhar para o estrangeiro; ou simplesmente porque eu próprio deixava de frequentar a escola, o trabalho, o lar… 

O meu avô arrastou-se assim quase 15 anos, arrastando tudo com ele. Coitado. Acredito que este seria, sem dúvida, um fardo ainda mais pesado de carregar.
  
Tenho muitos planos agora. 

Quero encontrar um trabalho que me diga algo, reencontrar velhos conhecidos, criar novas amizades, abrir os meus horizontes! Sinto um alívio tão grande agora. Sei que ele está finalmente sem dores, sem chagas. 

Começo agora a conseguir recordar-me do que ele era. Como nos dávamos bem! Ele levava-me a passear todos os dias, antes de eu ter de ir para a escola. Nunca fui ao infantário, para quê? Ele tomava conta de mim. Brincávamos, ríamos, jogávamos à bola. É assim que eu me quero recordar dele nesta nova vida.

Hoje de manhã acordei e apeteceu-me ir à praia, há quanto tempo não ia ver o mar. Em miúdo, passava férias com os meus avós na praia e era óptimo. Ao ver o mar lembro-me de quanto gosto dele. Não trouxe calções de banho, mas não resisti e fui tomar um banho de cuecas. Fiquei sentado na areia. Vim para casa e pelo caminho comprei o jornal.

Vou procurar um emprego que me realize. Ora aqui está: “Procura-se empregado para trabalhar numa livraria. Boa apresentação e com experiência. Remuneração compatível com a actividade.” Eu era capaz de trabalhar numa livraria. Fartei-me de ler livros nos bancos do jardim do lar. Eu gosto de literatura, sou afável, tenho boa apresentação. Acho que estou mesmo numa maré de sorte. Fui à entrevista. Exigiam pelo menos cinco anos de experiência no mesmo ramo ou emprego. Quando lhes disse que nunca tinha trabalhado mais do que uma semana agradeceram a minha disponibilidade. 

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Tratado Sobre o Fim - Parte III

Quando o meu avô adoeceu éramos três a fazer visitas: eu, minha mãe e minha avó.

Minha avó era uma pessoa saudável, dona de casa, dedicada ao marido. Com o passar dos anos foi perdendo peso, acumulando cansaço e não resistiu. Perdeu a esperança. A doença começava a matar os entes saudáveis. A morte de minha avó foi um duro golpe para minha mãe. Davam apoio uma à outra, ajudavam-se e ajudavam o meu avô enquanto me criavam. Com a ausência de minha avó, minha mãe tinha de trabalhar para nos sustentar, criar um filho e aguentar toda a pressão do lar.

Engraçado como a frase anterior - quando descontextualizada - poderia ser entendida num sentido completamente diverso. É que - aqui -  lar não é um conceito bom por natureza, não é algo que relacionamos com a nossa casa, com a nossa família, com os nossos e com aquilo que é nosso. Bem antes pelo contrário.

As cenas no lar repetiam-se. (Minha mãe) Tinha de acompanhá-lo à fisioterapia. Tinha de ir às reuniões de pais. Não podia chegar tarde ao emprego. Entrou em depressão e não conseguiu sair de lá. Mais uns anos passaram e eu - com vinte e alguns - vi-me sozinho. Problemas cardíacos.

Dediquei-me ao meu avô.

Ele percebia o que se passava, via-se em seus olhos. As visitas, dantes repartidas por três, agora eram exclusivamente feitas por mim.

Tentei arranjar emprego, mas nada era compatível com o horário do meu avô. Havia sempre uma ida de ambulância para o hospital com falta de ar ou então um tratamento novo que podia aliviar as dores ou ainda um médico que tinha bons resultados na terapia da fala…

Começava a dar valor à minha mãe. Pena não o ter feito em sua vida.
          

terça-feira, 19 de abril de 2011

Tratado Sobre o Fim - Parte II

Entro e chego à recepção. Todos me conhecem, todos me viram crescer, portanto não me perguntam nada. Não me pedem identificação. Deve ser usual, tendo alguém falecido, que os familiares se venham despedir do sítio que marcou as suas vidas. Eu não era a excepção.

Reconhecia cada cara. Mas algo estava diferente. As enfermeiras e ajudantes que tomavam conta dos doentes não vinham falar comigo. Os sorrisos e as palavras são normais aqui. Conhece-se gente fora de série nestes ambientes, gente que está disponível para ajudar para lá daquilo que lhes é exigível. Gente que respeita o sofrimento alheio. Mas também se conhece gente asquerosa, desprezível, gente que mercantiliza o sofrimento. Os sorrisos são normais aqui, mas demora algum tempo a perceber quais os sorrisos que são realmente valiosos.

Enquanto minha mãe foi viva vi muitas destas cenas: pessoas que julgávamos amigas apenas elogiavam o seu cachecol, repetidamente, simplesmente porque o queriam. E depois o relógio. E depois os sapatos.

Minha mãe oferecia todas estas coisas às pessoas que tratavam do meu avô, pensando que, com este tipo de agrados, de prendinhas, ele seria mais bem tratado. Faz-se de tudo e nem se pensa duas vezes.

Uma vez dêmos com uma destas pessoas a insultar um pobre homem que não falava, mal se mexia, condenado a viver de olhos abertos, aprisionado no seu corpo: “Estás a fazer-te pesado só para me chatear, não é?! Tu é que perdes! Hoje não te troco os pensos, nem te lavo, nem nada! Tu sempre foste um porcalhão, não é?”.

Trocar os pensos significa limpar e desinfectar as chagas que os acamados ganham nas costas por força de se encontrarem sempre na mesma posição: acamados. Corremos para o quarto porque os gritos se ouviam nos corredores. O meu avô estava a chorar sem som. Sem se mexer ou esboçar um movimento, as lágrimas escorriam pela sua cara. Ficámos tão transtornados que nem reparámos na fuga da senhora da nossa confiança, vestida dos pés à cabeça com roupas de minha mãe.

Entrei um pouco nos corredores labirínticos do edifício. Não havia problema, não me iria perder. Bastava orientar-me pelos gritos característicos dos doentes de sempre.

Havia um senhor, dois corredores abaixo do quarto do meu avô, que sempre que tinha fome dava um grito tão estridente que fazia ressoar as vidraças. Outro que quando queria chamar a empregada para o levar a casa de banho dava socos nas grades de ferro da sua cama, as quais, por sua vez, batiam na estrutura da cama, também de ferro, causando um barulho tremendo - tudo isto apesar de, a seu lado, na mesa-de-cabeceira, se encontrar um comando com um botão exactamente para esta finalidade.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Novo Tipo Legal de Amor

podes fazer de conta que nada se passou
podes querer acreditar que um de nós te usou


mas não vais ter forças para inventar um novo tipo legal de amor

podes desconfiar de mim para ganhar certeza
podes deixar-me comer sozinho à mesa


mas não vais ter forças para inventar um novo tipo legal de amor

podes tratar-me por você
que eu vou sempre ter-te como tu


mas não vais ter forças para inventar um novo tipo legal de amor

uma nova forma de amar

não vais enterrar a saudade
não vais enganar a saudade
não vais esconder a saudade
não vais fugir da saudade


e não vais ter forças para inventar um novo tipo legal de amor

Inveja

Olha para ti primeiro, agora estás pronto para me julgar
Se é assim tão fácil porque não tomas o meu lugar?
É tudo tão simples, tudo tão natural, parece fácil, até vem numa bandeja
Isso é tudo sabedoria ou é inveja?

Só erra quem cá está
Quem não está só julga

Olha para ti primeiro, agora já te quero ouvir
Se é tudo tão fácil porque é que eu nunca te vi a decidir?
Toma uma posição, escreve um poema ou espera pela bandeja
Isso é tudo sabedoria ou é inveja?

Só erra quem cá está
Quem não está só julga.

É a inveja, eu consigo vê-la a crescer em ti
Atrás dos teus olhos mora a inveja.

Casa Sem Tecto

eu quis construir uma casa
e esqueci-me do tecto
depois morar nela
mas não trouxe o afecto;

deixei-me estar numa nuvem
mas estas são feitas de algodão
quis segurar a tua dor por ti
porque não via o furo na minha mão;

eu sei que a tua dor
nao pode ser maior que nós

eu quis dar-te uma prenda inesquecivel
mas não tinha dinheiro
depois percebi que o querias
não está no meu mealheiro;

depois voltei a casa
e a comida estava fria
podemos não ter massa
mas isso não compra alergia;

eu sei que a tua dor
nao pode ser maior que nós
mas é maior do que eu
e isso mata-me
por não saber como lidar
porque não te posso dar
tudo aquilo que desejas.

Tratado Sobre o Fim - Parte I

Acabou.

Ele morreu. Tudo tem um fim.

O alívio apodera-se do meu corpo, percorre tudo o que há em mim.

Mas eu tinha de lá ir uma última vez, tentar enterrar aquele lugar e tudo o que me fez passar. Conheço cada canto, cada banco, sei onde e a que horas faz sombra no jardim.

Cheguei. Respiro fundo antes de sair do carro: é a última vez que aqui venho, prometo a mim mesmo. Ao longe já sinto aquela sensação de desespero, de tempo perdido, o cheiro a resignação. Mas em mim cresce agora outra coisa – nova.

Antes de entrar no edifício passo pelo jardim - murado e com grades brancas ao alto, as quais se assemelham a setas espetadas no chão. O jardim é um grande quadrado rasgado por um caminho em terra em forma de cruz, dividindo assim o grande quadrado em quatro quadradinhos. Em cada um deles há um canteiro - disposto em losango - com flores. Conheço-as a todas e todas elas me conhecem.

Sempre fui infantil. Lembro-me, à medida que passo, dos jogos que fazia no jardim: ou à espera da hora da visita ou a fazer um intervalo dela.

Sentava-me nos bancos em frente aos canteiros e escolhia uma pétala de uma flor: primeiro, uma cor forte – azul; depois, uma cor fraca – vermelho; misturava com um pouco de terra e umas folhas secas; mexia com um pau velho. Eu acreditava realmente (desconfiando da bondade de tal acção e simultaneamente querendo muito acreditar) que aquilo era a poção que o libertaria. E ali ficava uns minutos, calado, a fazer figas com toda a matéria com a qual é possível fazer figas, cerrando os dentes, de olhos fechados.

Percorria calmamente, com medo, os corredores para chegar ao seu quarto. Tinha medo da - aos olhos de hoje - idiotice mais uma vez não resultar. Tinha medo que algo acontecesse e que assim  me tivesse tornado numa espécie de bruxo. Claro que nunca nada aconteceu. Foi nestes bancos que escrevi o meu primeiro poema.

Oh morte não venhas cedo que eu não quero morrer. Oh morte não venhas tarde que eu não quero sofrer.

Lembro-me de como tinha ficado bonito. Algumas letras saíram alaranjadas, uma vez que escrevi na terra com o tal pau velho das poções que ainda conservara algum do preparado na ponta.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Chegamos ao Fim da Canção II

Meus queridos,

Escrevo estas linhas pouco tempo depois de mais uma vitória (histórica) do Futebol Clube do Porto.

Obrigado.

(Há quem diga recorrentemente não compreender o fenómeno, as paixões que suscita, os comportamentos associados, comentário esse que, em boa verdade, nada tem de novo. Mas, como em certas coisas na vida, não tem de haver explicação para tudo. Não peço que compreendam, tal não vos é exigível.

Reconheço não ser igualmente capaz de perceber o prazer (quase tântrico) que certas pessoas retiram ao comer, por exemplo, queijo ou chocolate, ou ainda ao comprar um determinado par de sapatos ou camisas. Uns - com aquela sobranceria tipicamente laica - chamam-lhe religião, outros - com aquela sobranceria tipicamente intelectualóide - boçalidade, eu chamo-lhe simplesmente amor.)

Há cerca de quatro meses iniciei este registo de coisas mundanas sabendo perfeitamente que havia cedido à tentação de achar que tinha alguma coisa para dizer e que o mundo devia ler o que penso / escrevo.

Caí, portanto, naquilo que criticava em muitos: deixar o ego falar mais alto e entorpecer a realidade das coisas (e o seu valor); julgar ter direito a escrever e a ser lido indepentemente da qualidade da escrita e da correspondente leitura.

Sucede, porém, que hoje - e de uma forma tão natural e simples que quase me envergonhou - me lembrei disso mesmo.

Voltarei quando tiver alguma coisa realmente importante a dizer e que valha a pena ser lida.

E paro um pouco para dormir.

Do sempre vosso,

Indieotta

domingo, 3 de abril de 2011

E é Isto

O que me está destinado (e que nunca mudará) é intercalado, por breves momentos, com outros estados.

Não há volta a dar.