quinta-feira, 30 de junho de 2011

Contador de Histórias - Parte V

O pai estava deitado no sofá de sua casa, o único sofá da casa, agarrado à barriga, desesperando por adormecer, quando ouviu – ao longe – pancadas na porta.

Ainda naquele estado de semi-consciência, sem abrir os olhos, dando uso ao automatismo que se adquire com a vivência diária em determinado espaço (ou trajecto), o pai dirigiu-se à porta e, reconhecendo os interlocutores, convidou-os a entrar.

Eram dois senhores vestidos de preto.

Austeros e severos, utilizando um tom de voz rigoroso e uma cadência tranquila (embora empedernida), um dos homens limitou-se a dizer o seguinte:

Viemos cobrar a nossa dívida. Tem duas horas para escolher um dos seus filhos. O outro vem connosco. Caso decida falar com alguém sobre este nosso encontro, levamos os dois.

E, tal como vieram, partiram, sem acrescentar qualquer outra informação.

O pai conservava-se incrédulo, incapaz de assimilar o ultimato. Durante largos minutos, a sua mente quedou-se num vazio infinito de uma escuridão avassaladora, maior do que a sua própria pessoa. 

Depois, vieram - com a raiva dos furacões - as interrogações.

domingo, 26 de junho de 2011

Contador de Histórias - Parte IV

Era uma vez um pai que amava os seus dois filhos, o menino e a menina, como se desse amor dependesse o funcionamento de todas as coisas do universo.

Como os três viviam sozinhos no mundo, uma vez que a mãe morrera já há vários anos, tantos que os meninos nem lhe guardam a imagem, o pai conservava e concentrava em seus filhos todas as suas forças e vontades.

A partir da morte da mãe, a vida do pai passou a ser a educação dos seus meninos. 

Ao mesmo tempo que tentava esconder a miséria da vida, poupando-os aos sofrimentos de quem vive, o pai dedicava a sua vida a torná-los em tudo aquilo que ele, por uma razão ou por outra, não conseguiu ser: digno, honesto e merecedor de coisas boas.

O pai trabalhava muito - de dia, de noite, aos fins-de-semana, feriados, o pai não tirava férias de ser o pai que queria ser - e tudo quanto ganhava gastava na educação de seus filhos.

Mas os meninos cresceram e, de um dia para o outro, já não era preciso dinheiro para o infantário, passou a ser também para a escola e, no terceiro dia, para a música, para as línguas, para as artes…

O pai pensava que todas aquelas áreas se completavam e faziam parte de um todo complexo, sendo que, na ausência de alguma, a muralha que é a pessoa humana não teria outro destino senão a ruína, o ser incompleto e inacabado.

Acontece que o dinheiro que o pai ganhava começou a não ser suficiente, mas nunca lhe passou pela cabeça tirar os meninos de alguma daquelas actividades.

Então, na impossibilidade de se desdobrar em mais pais e sem soluções à vista, o pai começou a pedir dinheiro emprestado. 

E a quem? A quem não se deve pedir dinheiro emprestado: aos agiotas, aos cobarde que ganham a vida do infortúnio alheio.

De empréstimo em empréstimo, penhorando o seu futuro (e, para sua desgraça, o dos seus), o pai conseguiu levar a vida para a frente, empurrando-a com a barriga (que não tinha) e varrendo os problemas para debaixo do tapete (que também já havia sido vendido).

Mas, como em tudo na vida, o inevitável dia chegou.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

ERRATA

Afinal ensinou-me mais coisas:

- lutar até ao fim;

- fintá-la o mais possível.

Ficou por dizer - e por ouvir - um obrigado.

Um dia a gente encontra-se.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Acintosa

Ouve mais quem te ama
Ouve mais quem te faz a cama
Que é o mesmo que dizer
Ouve mais quem te ama.

Não sejas tão bichana
E ouve mais quem te ama
Com os pés de porcelana
Ouve mais quem te ama.

Ouve mais quem te ama
Sem que isso surja como um drama
Ouve menos o teu programa
E ouve mais quem te ama.

Ouve mais quem te ama
E não duvides do panorama
Ainda que seja por uma grama
Ouve mais quem te ama.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A Queda

Sempre que cais alguém ganha.

E nunca vai mudar
só quando eu crescer
ninguém quer saber
o quanto dói crescer

E nunca ninguém vai olhar
quando eu cair no recreio
o baloiço não vai parar
só por ter esfolado o joelho

Os meninos vão voltar a correr
todos juntos no recreio
ninguém vai mudar
só porque eu tenho receio (de não voltar ao recreio)

A campainha toca
é o toque de entrada
e os meninos vão em fila
para a porta da sala

E ela diz-me: "tem de ser"
e nunca está errada
pudesse eu entender
o toque de entrada

Sempre que cais alguém ganha.